terça-feira, 25 de outubro de 2011

Aquela Menina_Parte1

Por onde eu devo começar? Acho que vou começar pela minha família mesmo...
Bem, eu... Nunca conheci meus pais. Ás vezes eu me sinto o cara mais azarado do mundo por isso. Sempre ouço alguém falar pros meus amigos "você é a cara do seu pai" ou "você tem os olhos de sua mãe". Dá um pouco de inveja disso, sabe?
O lado bom é que me faz parecer com um Super-Herói. TODO super-herói é órfão, sem exceção. Se bem que eu seria um "Super-Inútil" mesmo. Não faço nada, sou um desocupado gastando cada centavo que meus tios recebem da aposentadoria. Opa! Acabei me desviando de onde ia começar. Normal.
Enfim, como expliquei antes, eu moro com meus tios. Elizabeth e Adauto são seus nomes. Estão beirando os 65 anos, e ano passado comemoraram Bodas de Prata. Vivem da aposentadoria deles e da irmã do Tio Adauto, que também mora na casa. Tia Augustina nunca foi parente minha de sangue, mas era como se fosse. É uma pessoa legal, gentil, graciosa. Era mais velha que seu irmão, ela já tinha 86 anos. Só tinha um problema.
O sobrinho dela. O irritante do Daniel.

Acho que todos aqui já conheceram alguém que desde pequeno que "desmunheca", né? Nada contra gays (tenho alguns amigos meus que são gays e são mais homem que muito borracheiro que anda por aí), mas aquilo é uma bichinha metida. No sentido mais literal da palavra. Ele mora ali também, mas por um motivo diferente do meu: Nem seus pais, podres de ricos, o aguentam. É como se ele plantasse o mal por onde passa, como se ele gostasse de sacanear os outros, como se ele se sentisse feliz com o outro se ferrando. Desde pequeno é assim. Enquanto eu brincava tranquilamente com aqueles carrinhos que abrem a boca, daqueles bem inúteis e ridículos que vem em balões surpresa de aniversários, ele aparecia com sua NOVA SUPER PISTA HOTWHEELS CARA PRA CACETE e esfregava -NO SENTIDO MAIS LITERAL DA PALAVRA- na minha cara. APENAS PRA SENTIR MINHA INVEJA.
E o pior é que a Tia Agustina passava a mão sobre a cabeça dele depois. Enquanto eu recebia a decepcionante mensagem dos meus tios de que "a gente tá cheio de contas. Não podemos pagar por um." E era assim que eu sobrevivia.
Mas qualquer coisa eu podia fugir pra a estação ali perto, onde eu conheci meus melhores amigos. Arthur, Caio, Davi e a Ana Sophia.
Arthur sempre foi o meu melhor amigo. Conheço-o desde meus cinco anos e sinto que vamos estar juntos até o fim de nossa vida. É um garoto calmo, quase tão calmo quanto eu. QUASE. Tem longos cabelos ruivos, sardas pelo rosto, dando mais ênfase á sua descendência irlandesa. É um cara legal. Sempre foi afim da Ana Sophia, mas ela nunca deu muita bola pra ele.
O Caio, por sua vez, sempre viveu no limite. Adorava se aventurar. Um dia quase foi atropelado por um trem só pra ver se conseguia atravessar antes do trem passar. Bem, ele ganhou cenzinho nessa. Tinha pavio curto e costumava se irritar com facilidade. Não que ele fizesse alguma coisa, mas ele ficava com aquela cara emburrada que ninguém aguenta. Mas mesmo assim a gente o adora. Ele andava sempre por aí com sua bicicleta, mas não cansava de invejar os carros que passavam pela frente da estação, dizendo que "um dia vou ter um desses".
Por outro lado, o Davi era o inverso do Caio. Um alienado mesmo. Tranquilo e sossegado, tinha horas que parecia que tinha cheirado algo, de tão aleatório que era seus assuntos. Frases como "O Massacre está chegando" e "Obrigado pelos peixes" era comum sair de sua boca. Ás vezes, a gente suspeitava que ele tinha um sexto sentido oculto, pois ele sabia exatamente o que a gente queria ouvir em certas horas, e aconselhava com suas frases aleatórias, muitas vezes vindas do abismo profundo que é sua mente.
E, por fim, claro, nossa presença feminina. Ana Sophia se juntou ao grupo á pouco tempo, ano passado, quando o Caio, em mais uma de suas apostas, se aproximou da solitária menina. Ela sempre foi a mais estranha de nós, com sua personalidade mutável. Horas está alegre, horas triste, outra tímida e logo depois de entusiasmada, chegando ao pico da raiva feminina. É ela quem acalma esses meninos (como ela nos chama nessas horas. o Davi nunca brigava nem se metia então a gente dizia que ele era um ser andrógeno. Por algum motivo ele gostava do comentário) em momentos de briga, geralmente incitada pelo gênio irritadiço do Caio. Ana Sophia era linda: seu cabelo, com uma enorme franja (que, lhe dava apelidos maldosos e errôneos pelos outros garotos, que a tachavam de emo) era negro com curtas mechas vermelhas no meio dele. Estava sempre com aquilo que a gente chamava de "manga luva", que eram luvas, sem dedos, que vinham até a altura do braço, e saia colegial.
Admito que eu tenho até uma quedinha por ela, mas meu respeito pelo Arthur é maior, então não vale a pena, é melhor deixar pra lá. Sim, ela é OTAKU.
Esse era meu grupo, essa era minha vida.
Pronto, falei sobre todos à minha volta. Faltou alguma coisa? Ah é. A gente vivia em uma comunidade perto das fábricas no centro. Meu tio costumava ser o vigia noturno de lá antes de se aposentar (há 3 anos) e foi fácil pra me colocarem no mesmo posto que ele, mas trabalhando de "tapa-buraco", cobrindo a folga dos outros, pra ganhar uns trocados por fora. Dois meses depois e eu já era amigo de todos por lá, e consegui empregar os outros. É bom trabalhar cercado de gente que conhecemos. Por sorte, convenci meu chefe a me deixar montar minha própria equipe de patrulha.
E foi numa dessas rondas que eu encontrei algo que iria mudar minha vida.
Era 17:00 horas e eu tava esticado no sofá da sala, em casa. Esticado no sentido mais literal da palavra. Com uma perna passando o braço do sofá e a outra no chão. O meu braço apoiado no outro braço do sofá, fazendo um apoio pra minha caixa torácica e outro braço meu seguindo as costas do sofá. Tô eu lá esticado, que nem um corpo morto, vegetando no sentido mais "Davístico" da palavra até que meu inferno começou.
Daniel chega do colégio. Me vê ali esticado. Resmunga que eu vou acabar quebrando o sofá. Eu nem olho pra ele. Ele diz que vai chamar a Tia Augustina. Eu continuo ignorando. Ele faz cara de emburrado e cruza a sala às pressas, em direção à cozinha. Sério, não sei o que ele ganha sendo tão imbecil. Mas dane-se, tô me fodendo pra ele. Alguns segundos depois e o telefone toca.
-Merda- Eu cuspo.
Sou obrigado a me ajeitar no sofá pra poder atender, mas já sei quem é me ligando a essa hora.
- Pois não? Quem fala?- Já digo sentindo o cansaço no corpo.
- Bernardo? - Ouço a já reconhecível voz do meu chefe. - Hoje é a folga da equipe do Pedro, lembra? -
-Aham - Respondo com a maior vontade do mundo.
- OK, então você vem?- Ele não perguntou no sentido "pergunta", mas em sentido "ordem".
- Claro, chefe. - Disfarço otimismo.
- Estarei te aguardando. - E desliga.
Meus tios estavam logo na porta, ouvindo a conversa, junto com o metido do Daniel. Provavelmente ele foi "caguetar" o jeito que eu tava sentado. Se ferrou, pois eles não estão mais se importando.
- Você vai, né?- Tia Elizabeth perguntou.
- Claro, tia. - Eu respondi, disfarçando novamente vontade.
- Tome cuidado, garoto. Fiquei sabendo que os guardas ouviram sons de passos noite passada. - Aconselhou Tio Adauto.
Antes era tudo mais fácil. Tudo era novo, tudo era legal. Eu achava que grandes coisas aconteciam nas fábricas, meu tio me contava muitas histórias de lá. A gente sempre ouvia coisas sobre "sombras à noite", ladrões, corpos que eram largados lá, coisas do tipo, sabe?
Desde que eu entrei lá, há um ano, o máximo que eu vi foi um cachorro perdido...
Enfim, liguei pro pessoal. Tenho que chamar a "tropa", né? A Sophia não vai poder ir, pois ela tem uns trabalhos da faculdade que ela deixou de última hora. Beleza, hoje vai ser serviço "de homem". E o Davi.
Demorou quase meia-hora pra eu chegar lá de urbano. Fui pegar o pior horário, que é quando os moleques da tarde tão saindo da escola. Cês não fazem ideia da bagunça que é essa hora. Só quem pega lotação sabe. Sério.
Chego lá quase atrasado. Em cima da hora, na verdade. O Davi e o Arthur já estão lá, entrando pelo armazém onde Roberto Cardoso, nosso chefe, nos espera.
O bom de trabalhar de noite é que, por ser poucos, não há necessidade de todo aquela conversa formal que é a relação de chefe e empregado, mas sim de colegas, mas respeitando um ao outro, claro.
- Cadê a Álvares (Ana Sophia)? E o Fernandes (Caio)?-Perguntou o chefe.
O chefe é estranho. Tem barriga saliente e um bigode grosso, já cinza pela idade. Costuma chamar todos pelo sobrenome, pra parecer mais "formal", mas o gerente da tarde não consegue manter o ar de homem sério.
- A Ana Sophia não pode vir. -Respondo - Mas o Caio disse que viria. -
- Deve estar chegando aí com aquela coisa velha dele - O Artur explicou zuando com ele.
- Droga. Assim vou me atrasar e minha mulher vai achar que eu estou traindo ela de novo!-
Houve uma vez que o Caio se atrasou por meia-hora. No outro dia, surgiu a história que a esposa de Roberto tinha suspeitado que tivesse levado chifres, afinal, ele é o chefe da guarda da tarde, não da noite.
- Calma, chefe - Aconselhou Davi- O Caio já vai chegar, fica "sussa".-
De fato, 10 minutos depois chegou o Caio, esbaforido, de bicicleta.
- Mal ae, a "magrela" empinou a roda no meio do caminho até aqui e eu quase fui atropelado- Se explicou.
- Cê tá legal?- Perguntou o Arthur. Recebeu o dedão levantado como resposta, pois Caio nem conseguia falar.
- Bem, então vamos logo. Peguem as coisas lá nos fundos enquanto eu fecho o portão da frente. Amanhã de manhã o Schmidt (Pedro, o chefe da guarda da manhã) abre o portão pra vocês. - Roberto fez o aval rotineiro.
Cinco minutos depois e estava eu, Arthur e Caio dando voltas, com apenas uma lanterna e um cassetete (isso me lembra da Ana Sophia e sua mania de chamar o cassetete de "tonfa") por todos os setores da fábrica, enquanto Davi fica no alto da torre de vigia, checando tudo do alto. Com certeza vai pegar no sono lá, como sempre.
A fábrica é velha, ou pelo menos parece. Ou pelo menos eu acho, uma vez que meu tio trabalhava aqui desde que era moço. Como qualquer metalúrgica, tem todas aquelas caldeiras com ferro fervendo, controles, fumaça, CO², coisas que a gente não pode chegar perto. Com exceção do Caio. Ele sempre se fecha nos armazéns pra aprender sobre as máquinas, mas, claro, sem tocar em nada.
*tchk... tchk...
Opa! Passos!
- TEM ALGUÉM AÍ?
Penso agora que não devia ter perguntado. Geralmente em filmes de terror, o guardinha é um dos primeiros a morrer.
Mas sem resposta. Encosto a mão na "arma" e tento iluminar o escuro armazém onde eles guardam máquinas velhas e inoperantes. Nada. Nenhum som ou movimento.
Fora algumas sombras que minha cabeça insiste em dizer que é algo.
Apesar de ter plena certeza que eu ouvi algo, achei mais "seguro" confiar no meu ateísmo.
Quando eu estou prestes a sair de novo, mais passos. AGORA EU TENHO CERTEZA.
- QUEM ESTÁ AÍ?
Não só confirmo como recebo resposta.
*Kapééim!
Faz o som metálico do vulto caindo de cima de uma velha caldeira e pousando em umas enferrujadas chapas metálicas.
Minha curiosidade age mais forte do que eu.
E ilumino.
Longos cabelos loiros e uma camisa branca meio rasgada, apertada por causa dos peitos.
Uma garota. A garota mais linda que eu já vi.

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